O pacote de emendas parlamentares negociado entre o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) e o Congresso Nacional pode resultar em um drible de até R$ 24 bilhões na Lei das Eleições, ao antecipar o pagamento e diminuir o controle sobre a liberação desses recursos em 2024, período de escolha dos prefeitos e vereadores do Brasil.
O Congresso mudou as regras dos três principais instrumentos de envio de recursos para as bases eleitorais dos parlamentares: as transferências fundo a fundo, que bancam ações da saúde e de assistência social; os convênios, que permitem obras e compras de equipamentos nos Estados e municípios; e a emenda Pix, modalidade de envio de recursos sem transparência e planejamento.
As mudanças cercam as três formas de repasse das emendas, antecipam o pagamento dos recursos e driblam uma regra estabelecida na legislação desde 1997. A lei proíbe a transferência de recursos, incluindo as emendas, nos três meses anteriores à eleição. A única exceção é se o serviço já foi feito e tudo esteja pronto para o pagamento. A norma serve para evitar, por exemplo, que um prefeito gaste um valor excessivo de recursos perto da eleição para ser o vencedor nas urnas, desfavorecendo um adversário e desequilibrando a disputa.
As novas formas de repasse aprovadas pelo Congresso cumprem tecnicamente a lei eleitoral ao antecipar as transferências até junho, período que começa a proibição, mas desvirtuam o princípio da regra e permitem o que antes era impossível: começar e executar uma obra no meio da campanha já com o dinheiro em caixa. Na prática, a norma conhecida como “defeso eleitoral” pode se tornar inócua após 30 anos de sua criação. Além disso, a distribuição do dinheiro ocorre sem ninguém – nem o governo, nem o Congresso – ter a obrigação de avaliar quais cidades mais precisam de um recurso ou de outro.
Antes, funcionava assim: o prefeito só recebia o dinheiro se apresentasse um projeto para aquela obra, tivesse a concordância do ministério da área e ainda um aval prévio de um órgão de controle que fiscalizaria e acompanharia o caminho do recurso. Além disso, o valor só caía na conta conforme o andamento da obra e ficava travado durante a campanha eleitoral. A situação gerava reclamações de prefeitos, parlamentares e pressão no governo federal. Agora, com as mudanças em todos esses instrumentos, o dinheiro será transferido antes do período de proibição, escapando da lei eleitoral, e as prefeituras ficarão livres para gastar o recurso no meio da campanha, sem se preocupar com o “defeso”.
O Congresso aprovou um calendário de pagamento de emendas parlamentares na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024, impondo ao governo Lula repasses obrigatórios no primeiro semestre. A proposta faz com que pelo menos R$ 10,7 bilhões em emendas para saúde e assistência social sejam pagos antes da eleição. O dinheiro é usado para a manutenção de postos de saúde e hospitais. É uma modalidade conhecida como “fundo a fundo”, em que o recurso sai do ministério direto para o fundo estadual ou municipal. Lula vetou o cronograma, mas estabeleceu um calendário por decreto que na prática contempla o que os parlamentares querem.
Depois, o Congresso aprovou outro projeto para acelerar e antecipar o pagamento de emendas que são repassadas por convênios e contratos assinados entre a União e os Estados e municípios. Conforme o Estadão revelou, a proposta permite o envio de recursos antes do início das obras e sem a aprovação de projetos que justifiquem aquele investimento. Nesse caso, o modelo engloba pavimentação de ruas e entrega de tratores, por exemplo. A manobra tem potencial de antecipar o pagamento de R$ 5 bilhões em emendas antes da eleição municipal deste ano. O presidente Lula também vetou essa proposta, mas congressistas da própria base aliada ameaçam derrubar o veto e cobram agilidade nos repasses.
O cerco à eleitoral eleitoral se fecha com a emenda Pix, revelada pelo Estadão, um recurso sem transparência, que vai somar R$ 8,1 bilhões em 2024. A emenda Pix poderá ser paga antes das eleições, também escapando da lei eleitoral e permitindo com que o dinheiro seja usado por prefeitos no meio da campanha, o que não era autorizado anteriormente, quando esse modelo não existia.
A emenda Pix consiste na transferência direta de recursos para Estados e municípios, sem dizer no que o dinheiro vai ser gasto, caindo num limbo sem fiscalização. O Congresso e o Tribunal de Contas da União (TCU) aprovaram regras para obrigar os municípios a prestarem contas do que fizeram com o recurso, transparência que não existe hoje, mas livraram de punição os prefeitos que não respeitarem a exigência.
“Trata-se de contornar a finalidade da vedação da lei eleitoral, sem afrontá-la diretamente. Um desvio de finalidade e um atropelo sutil e opaco”, afirma Élida Graziane Pinto, procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo e professora da Fundação Getúlio Vargas (FGV).
Para a especialista, o cronograma de pagamento de emendas, mesmo aquele editado pelo presidente Lula após o veto, atropela a legislação. “É uma engrenagem orçamentária que busca a perenização do grupo político no poder. É quase impossível a novos ingressantes no ciclo eleitoral superar essa barreira de entrada custeada com recursos públicos.”
Nas eleições de 2022, o Congresso fez uma manobra semelhante. Os parlamentares aprovaram um projeto dando poder para o governo repasse emendas, comprar tratores e entregar cestas básicas em plena campanha, afastando a vedação da lei eleitoral por meio de uma alteração na Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO). Tecnicamente, a LDO não se sobrepõe à legislação eleitoral. A mudança foi sancionada pelo então presidente Jair Bolsonaro (PL).
Uma emenda é a forma de o parlamentar dizer para onde vai o dinheiro do Orçamento federal. Ele pode escolher qualquer município e qualquer obra para contemplar, mas não precisa cumprir nenhum requisito de equilíbrio regional nem é obrigado a ver se uma cidade está mais necessitada que a outra.
Com os novos instrumentos aprovados, o dinheiro começará a ser enviado antes mesmo do início de obras, sem aprovação de projetos e sem instrumentos de fiscalização prévios, como acontecia anteriormente. “O risco é que o prefeito faça aplicações desatentas ao planejamento setorial dessas políticas públicas para impactar as eleições e, após o pleito, deixe serviços a descoberto”, diz Élida.
A taxa de prefeitos que concorreram à reeleição e foram reeleitos no Brasil subiu de 31% para 49% entre as eleições de 2016 e as eleições de 2020, de acordo com a Confederação Nacional dos Municípios (CNM). Em 2016, as eleições ocorreram após a Operação Lava Jato e em meio a uma onda de novos políticos. Em 2020, a disputa foi diferente, pois ocorreu em plena pandemia de covid-19, com as prefeituras sendo irrigadas por recursos emergenciais e uma “explosão” de emendas, turbinadas naquele pelo orçamento secreto, beneficiando quem já estava no cargo.
Em 2024, o dinheiro indicado diretamente por parlamentares no Orçamento pode atingir R$ 53 bilhões, beneficiando ainda mais os prefeitos que receberão o dinheiro e que vão disputar a eleição neste ano. A cada 100 reais em emendas parlamentares, 70 são direcionados diretamente para as prefeituras – o restante vai para Estados, entidades privadas ou é executado diretamente pelo governo federal.
“Nós estamos respeitando o calendário eleitoral, não é para contrapor a lei, é para cumprir, por isso mesmo estamos pedindo agilidade”, afirma Danilo Forte (União-CE), relator da Lei de Diretrizes Orçamentárias (LDO) de 2024, defendendo o cronograma de pagamento e os repasses antecipados. Ele admite que o modelo vai facilitar a vida dos prefeitos atuais que vão buscar a reeleição. “Se a cidade está limpa, os serviços de educação e saúde estão funcionando bem, com o dinheiro chegando, facilita a reeleição do prefeito.”
O presidente Lula editou um decreto com calendário de emendas em 2024. Até junho, o governo se comprometeu a repassar R$ 20 bilhões, garantindo esses recursos antes das eleições. O valor ficou R$ 4 bilhões abaixo da conta do pacote aprovado pelo Congresso, mas, por enquanto, agradou líderes do Congresso. A quantia ainda pode subir porque nem tudo está resolvido. O Centrão cobra R$ 5,6 bilhões em emendas de comissão vetadas por Lula no Orçamento de 2024 e parte desse valor pode ser paga antes da eleição se o veto for derrubado. O governo defende o veto prometendo pagar as emendas sancionadas, que somam um valor recorde em 2023, a tempo da disputa municipal.
Fonte - Por Daniel Weterman / O Estadão