A simples leitura de mãos — quiromancia, arte de divinação através das linhas das mãos e tradição milenar dos povos ciganos — foi suficiente para colocar atrás das grades, na cidade de Patos-PB, uma cigana de 59 anos. Rosineide Pereira foi surpreendida ao receber voz de prisão preventiva na última quinta-feira (9 de outubro), na cidade de Equador-RN, após ter sua prisão decretada pelo juiz Mathews Francisco Rodrigues de Souza do Amaral, da Comarca de Imaculada, pertencente à Vara Única de Água Branca-PB, por prática de extorsão e estelionato, depois de finalmente ser localizada.
O caso, que teve início há quatro anos, vem mobilizando a comunidade cigana, que considera o episódio um ato de preconceito e discriminação contra uma arte ancestral, passada de mãe para filha, e que, segundo eles, não configura crime, mas sim o exercício legítimo de uma tradição cultural.
A suposta vítima afirmou que, em julho de 2021, “a acusada a abordou dizendo que estava acometida de trabalhos espirituais realizados pela amante do marido e a induziu ao pagamento de R$ 2.000,00, a fim de combater o mal supracitado”.
Já Rosineide relata que foi procurada por uma mulher para realizar a leitura de suas mãos. O serviço teria sido contratado por R$ 2 mil, na cidade de Imaculada-PB, sendo a cliente orientada apenas a acender velas e fazer orações.
Pouco tempo depois, a mulher procurou a Delegacia de Polícia Civil de Imaculada, relatando à delegada Dacinaura Alves de Assis que teria sido enganada e extorquida. A delegada então abriu inquérito para apurar o caso.
Dias após a denúncia, a cigana foi localizada em Tabira-PE, na casa da mãe, após uma ligação telefônica em que foi convencida a comparecer a um encontro sob o pretexto de uma nova consulta. Ao chegar ao local combinado, foi surpreendida pela suposta vítima e pela polícia, sendo levada à delegacia.
Apesar de negar qualquer ato ilícito, como estelionato ou extorsão, e de ter devolvido os R$ 2 mil recebidos anteriormente, Rosineide passou a responder à investigação. Segundo a acusação, ela teria exigido mais R$ 900,00 sob ameaça de realizar outro trabalho espiritual para prejudicar o filho da cliente, o que ela nega veementemente.
Acreditando que o caso estava resolvido, a cigana seguiu sua vida, perambulando entre cidades, como é comum na tradição nômade de seu povo. No entanto, a investigação continuou.
Durante dois anos, Rosineide não foi localizada, o que fez o inquérito tramitar entre a Polícia Civil e o Ministério Público sem que ela tivesse a oportunidade de se defender, já que não tinha conhecimento de que respondia judicialmente pelos crimes imputados.
Nesse período, o Ministério Público requereu a suspensão do processo e do prazo prescricional, bem como a prisão preventiva da acusada, o que foi acatado pelo juiz Mathews Francisco.
Em fevereiro de 2023, o magistrado recebeu a denúncia do Ministério Público, e, no dia 28 de fevereiro de 2024, decretou a prisão preventiva da cigana por considerá-la foragida, com base nos depoimentos colhidos. Sua prisão só foi efetivada dois dias atrás, na cidade de Equador-RN, onde moram parentes. Ela é acusada de extorsão (art. 158) e estelionato (art. 171) do Código Penal Brasileiro, ambos com penas superiores a quatro anos de reclusão.
Mãe de três filhos, Rosineide foi transferida nesta sexta-feira (10) para o Presídio Regional Feminino de Patos, onde aguardará julgamento.
Momentos depois, uma cena comovente foi registrada neste sábado: sabendo da prisão, os filhos e o ex-marido acamparam em frente ao presídio, afirmando que só deixariam o local após a soltura da cigana. Eles acabaram sendo convencidos pela advogada de defesa a retornarem para casa.
Ao tomar conhecimento do caso, Rosineide passou a ser acompanhada pelo Núcleo Jurídico Francisca Vasconcelos, do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Patos, através da advogada Danielle Marinho, que considera a prisão injusta.
A advogada afirma que o processo está repleto de equívocos jurídicos, já que a cliente foi colocada em cárcere com base apenas em depoimentos, sem provas materiais apresentadas pela suposta vítima.
“Eu me pergunto até onde o preconceito pode chegar quando se veste de justiça. Essa mulher cigana foi presa injustamente por ler mãos, uma prática ancestral do povo cigano, carregada de simbolismo, história e tradição. Transformaram isso em crime. Essa mulher, uma mãe trabalhadora, de saúde frágil, foi acusada de estelionato simplesmente por exercer sua cultura”, declarou Marinho.
Para a advogada, o caso reflete um preconceito histórico contra o povo cigano:
“As manifestações culturais populares, indígenas, afro-brasileiras e ciganas são constantemente estigmatizadas. Essa prisão é um erro da Justiça e também um símbolo do que acontece quando o Estado não reconhece e não respeita as diferenças. Está se criminalizando um modo de vida e tentando silenciar uma cultura inteira através do medo e da humilhação”, afirmou.
O pedido de habeas corpus, protocolado pela defesa junto ao Tribunal de Justiça da Paraíba, foi negado.
Danielle Marinho reforçou:
“Nenhuma tradição pode ser algemada. O que está acontecendo é exatamente isso: uma mulher está privada de sua liberdade por exercer uma prática de resistência cultural.”
Para Maria Jane Soares, prima de Rosineide e presidente da Associação Comunitária dos Povos Ciganos do Condado (ASCOCIC), o momento é de tristeza e indignação.
“As famílias ciganas estão muito abaladas. O filho mais novo dela, principalmente, chora constantemente e chegou a passar mal com toda essa situação”, relatou.
Segundo a prima, Rosineide sofre de diabetes e tem histórico familiar de doenças cardíacas, que causaram a morte de seu pai.
Jane disse que muitas ciganas não tem profissão e que não tem como sustentar seus filhos e usam a leitura de mãos como forma de conseguir algum recurso.
“O fato está amedrontando as mulheres ciganas”, disse ela. Jane afirmou ainda que muitas pessoas pagam até com objetos pessoais para ter mãos lidas e depois alegam que foram roubadas.
A tradição cigana de ler mãos
A tradição cigana de leitura de mãos, ou quiromancia, é uma prática ancestral transmitida por gerações, principalmente pelas mulheres, e popularizada pelo povo cigano que migrou da Índia. Envolve a leitura das linhas, montes e dedos da mão para interpretar aspectos da vida, como amor, trabalho, sorte e espiritualidade. A quiromancia está ligada à organização e subsistência de muitas famílias ciganas, sendo passada de mãe para filha desde a infância.
Fonte: Portal 40 Graus